Pode-se encarar as relações do romance com o folclore sob vários aspectos, desde o mais elementar aproveitamento do material folclórico como um fator de realce na observação direta, até à possibilidade de uma estética que permita um contato e uma comunhão maior entre o público e o povo. Mas, há uma questão que afeta qualquer tentativa, ampla ou restrita, do aproveitamento dêsse material por parte do romancista: sua validade e limites. Sim, porque é preciso considerar que o romancista faz literatura e não folclore e que além disso os folcloristas podem também ter suas idéias sôbre o assunto. A questão coloca-se, pois, em têrmos das relações entre o folclore e a literatura.
Disse que se deve considerar também o ponto de vista particular do folclorista. Deve-se, é claro, porém, mais por uma razão de ordem, que por uma questão de precedência. O folclorista foi dos últimos a tratar dos fatos folclóricos - lendas, tradições, mitos, superstições, crendices, técnicas de cozimento do barro, de modelação, formas de cultivo da terra, estilos típicos de vida etc. - e quando êle surgia no Século XIX tinha diante de si um trabalho de notação tão grande, que poderia iniciar o estudo do folclore indiretamente, nas grandes obras, começando na antiguidade clássica no teatro grego e em Homero, passando por Vergílio e Petrônio, até chegar a Gil Vicente, Cervantes, Mistral... O folclore confundia-se na literatura, embora não houvesse preocupação alguma em se fazer arte popular. É, aliás, uma sobrevivência dessa fase muito extensa a idéia de que o folclore constitui uma parte da literatura.
O aparecimento dos folcloristas modificou um pouco essa visão das coisas. De um lado porque êles distinguiam o folclore - cujo têrmo também criaram - em folclore subjetivo, em que se procura sistematizar e estudar os elementos folclóricos, buscando por aí atingir uma formulação científica e teórica, sob os auspícios do positivismo, e em folclore objetivo, item sob que seriam agrupados todos os elementos folclóricos, tôdas as danças, as cantigas, as superstições, as crendices, os provérbios, aquêles modos de ser e de agir típicos de um povo ou de uma região, o próprio conteúdo do folclore, pois. Já aí ficou feita uma divisão de trabalho. O estudo propriamente dito do material folclórico compete ao folclorista, ou qualquer outro especialista em ciências sociais. O literato, como tal, nada tem que ver com o "folclore subjetivo". E, é óbvio, pouco lhe interessam as questões teóricas e os aspectos técnicos do folclore; quando o romancista, por exemplo, se utiliza de material folclórico, faz notação ou faz estilização. Põe-se em contato direto com o fato folclórico - um personagem mítico, como a Iara ou o Saci - nas esferas do folclore objetivo sem nenhuma outra preocupação.
Os folcloristas do século XIX e alguns dêste século, entretanto, desvendaram um novo modo possível de se encarar as relações entre o folclore e a literatura - ou, mais precisamente, de situar um e outro, partindo do próprio conceito de folclore. O folclore seria a cultura dos meios populares, das camadas baixas da população - nas zonas rurais e urbanas - em poucas palavras: a "cultura dos incultos". Era, pois, o conjunto de conhecimentos, técnicas e modos de ser dos iletrados, transmitido oralmente. Distinguia-se da literatura, cultura dos meios elevados, dos letrados e dos "cultos". A diferença entre a literatura popular e a literatura erudita é apresentada como uma diferença fundamental, de natureza: duas formas culturais antagônicas e, em certo sentido exclusivas. O burguês e o homem do povo - terminologia de Saintyves e de Maunier - seriam a expressão dêsse antagonismo. Aquêle vivendo a idade positiva contiana, pensando racional e logicamente as coisas, capaz também de progresso; enquanto o segundo revelaria uma etapa anterior do desenvolvimento das sociedades ocidentais surgindo como um homem imobilizado pelo passado e sufocado sob o pêso da tradição, pensando as coisas de modo anti-racional e ilógico. A diferença de mentalidades seria irredutível. Contudo, ela não é inata: o homem herda-a socialmente, revelando-a à medida que traduz o seu próprio meio social e cultural, a sua "cultura" - sua literatura e o seu folclore. Mas, essa irredutibilidade, essa diferença de natureza, abre um abismo entre o folclore e a literatura. Por isso diante do artista - romancista ou poeta - que se orientasse por esta concepção, haveria só três caminhos possíveis: aproveitar o folclore como fonte de sugestão. Aí o tema folclórico seria mero ponto de partida, e o que se incorporaria à literatura seria uma estilização do fato folclórico, e não o próprio fato folclórico. A essência, pois, da literatura, conservar-se-ia salva. O romance "Pedro Malasarte" do sr. José Vieira é um exemplo. Ou então o folclore surge como uma fonte de argumentos estranhos, exóticos e fortes - de motivos e temas novos, dando uma côr ao fundo do romance, um ambiente de vida desconhecido. O trabalho do romancista, no caso, se reduz a um aproveitamento superficial dos fatos folclóricos. É a notação rápida dos "costumes populares" dos românticos. Nunca ultrapassam os limites do descritivo e não há nenhum esfôrço no sentido de entender o homem sob o ângulo daqueles elementos folclóricos. E, ainda, o terceiro caminho, que é a tentativa mais arrojada: tentar uma conciliação entre as duas culturas, entre os dois "tipos" de homem. O tema folclórico deixa de ser simples ponto de partida, para assumir uma importância nova - o artista acaba atribuindo uma realidade essencial do mito, submetendo-se-lhe definitivamente. É a fascinação do abismo, pois o artista pode se despenhar de uma vez no folclore, como Mistral, adotando uma atitude de participação, sem que se possa avaliar até onde a solução pode ser aceita como intermediária. A finalidade maior do artista, entretanto, muitas vêzes é consciente, neste caso! A revelação essencial e integral de um povo, dando uma amostra do conflito das duas mentalidades e um comêço de síntese. Parece-me ser a de Goethe a tentativa mais vigorosa, no gênero; mas êle já estaria esquecido se não ficasse mais próximo da "cultura", que da simples peça de títeres que era o "Fausto". O resultado e o destino dessas aventuras é sempre êsse: fatalmente o artista dá maior ênfase aos valores de seu meio restrito, distanciando-se dos valores do povo à medida que as duas esferas de valores também se distanciam.
Modernamente, esboça-se um movimento que tende ao aproveitamento mais profundo dêsses valores folclóricos. De um lado, liga-se a uma concepção mais ampla de folclore. O folclore como uma expressão das condições presentes, típicas, da vida do povo, envolvendo todo seu estilo de vida. Essa concepção abre uma nova ponte entre a literatura e o folclore porque, então, desaparece aquela imagem do homem do povo vivendo imobilizado pela tradição e incapaz de progresso, surgindo em seu lugar o ser humano que êle é. Ou seja, a atenção do artista desloca-se dos fatos folclóricos pròpriamente dita para as pessoas que êles caracterizam. Surge aí o homem que interessa à literatura contemporânea, revelando em suas canções, em suas cantigas em suas modinhas, em seus desafios, em seus ABC, aquilo que êle pensa, que êle crê no momento e também o que êle deseja e o revolta. Os valores folclóricos como uma forma, mesmo de expressão da história contemporânea do povo e também de sua ideologia política. Aí é possível encarar o aproveitamento do material folclórico de outra maneira. Primeiro, em si mesmo como documentário; segundo, como uma espécie de pesquisa de busca da verdadeira imagem do "homem do povo". É o que acontece por exemplo no romance moderno de um Jorge Amado ou de um Cyro Alegria. A estilização é relegada e à notação segue-se um trabalho profundo de compreensão do homem em função de seus valores típicos. Os limites entre a literatura e o folclore não só tornam-se menos nítidos e rígidos, como a literatura apresenta-se como uma forma fecunda de revelação do folclore.